Ministro da Fazenda afirmou que setor de apostas representa ‘caso de saúde pública’
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), declarou nesta segunda-feira (21) que é favorável à proibição das apostas online no Brasil. Conhecidas popularmente como “bets”, as plataformas de apostas esportivas passaram a operar no país com mais visibilidade após a regulamentação sancionada em 2023, mas seguem gerando preocupações no alto escalão do governo.
“Se aparecer um projeto na Câmara Federal [para decidir se] continua ou para, eu apertaria o botão do para. Não tem arrecadação que justifique essa roubada que nós chegamos”, afirmou Haddad, durante entrevista ao canal ICL Notícias.
Segundo o ministro, o setor de apostas representa hoje um grave problema de saúde pública e financeira. De acordo com ele, o crescimento descontrolado das bets compromete o bem-estar da população, especialmente entre os mais jovens. “O que está acontecendo é uma desgraça”, disse, em tom de alerta.
Na entrevista, Haddad revelou que o Ministério da Fazenda está preparando um relatório detalhado sobre as apostas ilegais no Brasil. O documento, que também contará com informações do Banco Central, será entregue pessoalmente ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo o ministro, os dados foram coletados ao longo dos últimos seis meses e apontam indícios de lavagem de dinheiro, uso de fintechs para transações ilegais e conexões com organizações criminosas.
“Vamos incorporar a Polícia Federal nesse debate, porque não é só atribuição do Ministério da Fazenda. Tem crime por trás”, afirmou. Para Haddad, o tratamento dado ao setor de apostas deve seguir modelo semelhante ao da publicidade de cigarro e bebida alcoólica: com restrições claras, fiscalização efetiva e campanhas de conscientização.
Ao traçar o perfil de quem mais utiliza as bets, Haddad afirmou que cerca de 60% dos apostadores têm até 39 anos, o que traria impactos sobre essa geração. “Eu soube de casos escabrosos envolvendo bets, de conhecidos que chegaram a perder familiares em função de bets. Então é um drama real”, relatou.
Ainda de acordo com o ministro, entre 2019 e 2023, mais de R$ 40 bilhões foram transferidos para fora do Brasil por meio de operadoras de apostas esportivas, sem pagamento de impostos ou qualquer controle governamental. “Esse dinheiro sumiu do Brasil”, declarou. O valor refere-se ao período anterior à regulamentação, o que, segundo Haddad, mostra a urgência de rever o marco legal e aumentar a eficiência da fiscalização.
Ao final da entrevista, Haddad reforçou que o governo pretende adotar uma postura mais dura diante dos riscos oferecidos pelas apostas online. “Nós vamos ter que enfrentar”, concluiu.
Confira a entrevista na íntegra!
Eduardo Moreira – Estamos falando em aliviar o imposto das pessoas mais pobres e taxar os super-ricos. A maioria [da população] parece ser a favor, mas a discussão fica meio abstrata. Você pode explicar o que faz uma pessoa ser super-rica e como essa proposta que está sendo apresentada vai taxar essas pessoas a partir de agora?
Fernando Haddad – Eduardo, você acompanha economia há muitos anos e você sabe que a esquerda sente arrepios quando você ouve falar de ajuste fiscal. Por que a esquerda tem arrepios com isso? Dentre outras coisas, é porque ela sabe que na História do Brasil ajuste fiscal significa penalizar as camadas mais vulneráveis da população. Então, você falou em ajuste fiscal – um cara que é a favor da justiça social, serviço público de qualidade -, já se apavora.
A direita fala todo o dia em ajuste fiscal porque sabe que historicamente nunca recaiu sobre ela. Por isso que nós chegamos a R$ 800 bilhões de incentivos fiscais para empresários e nem de longe nós chegamos a isso de benefícios sociais para a população de baixa renda.
Então, isso virou um tabu no Brasil, só que nós não estamos em condição de fazer isso agora – o mundo está muito complicado. Eu propus para o presidente [Lula] antes de aceitar o cargo de ministro da Fazenda. Quando ele me sondou, eu falei: ‘Quero te fazer uma consulta prévia, para nós remarmos na mesma direção. Estou afim de fazer isso [ajuste], eu acho que nós precisamos equilibrar as contas públicas, porque são 10 anos de déficit primário na casa de 2% do PIB [Produto Interno Bruto], isso não vai resolver nosso problema, estamos em uma armadilha, só que eu vou preservar o pobre no Orçamento’.
Ele falou: ‘Quem é que não está contribuindo?’. Então [eu falei], ‘vou pegar lá o andar de cima, o 1% que não paga imposto e vou fazer em cima deles o ajuste’. O presidente vibrou, como você pode imaginar, e falou ‘Haddad, eu quero isso mesmo, eu sempre tive as contas em ordem, nos meus oito anos de governo ninguém pode me acusar de irresponsabilidade fiscal. Você está dizendo que isso é importante para o crescimento, eu vou comprar essa ideia, mas você está me garantindo que vai preservar o pobre no Orçamento e botar o rico no imposto de renda’.
Eu falei: ‘Fechamos o acordo, é por aí que eu vou’. Fora as outras reformas – do crédito, a reforma tributária. Não estamos falando de tudo o que a Fazenda faz, estou falando de um ponto específico mas fundamental para buscar a justiça no país. O que nós estamos fazendo? O presidente tinha a proposta, que não era nova, de isentar até R$ 5 mil. O [ex-presidente Jair] Bolsonaro prometeu e não cumpriu, e ele [Lula] disse: ‘Quero prometer e cumprir’.
E nós, então, começamos a tentar encontrar a maneira de financiar essa renúncia – porque você está abrindo mão de R$ 30 bilhões você precisa de R$ 30 bilhões para equilibrar. E nós percebemos que 141 mil brasileiros, ou seja, estamos falando de 0,1% da população que tinha rendimentos na casa de R$ 1 milhão por ano, e não pagavam sequer 10% de imposto de renda, que é o que uma professora de escola pública paga, é o que um policial militar paga. uma enfermeira paga…
Paga até mais, né?
Paga até mais – paga 10, 11, 12, 13, 15%.
Quem está lá em cima chega a pagar uns 20 e poucos se a alíquota de 27,5% pegar um pedaço grande…
Não é lá em cima, não. O cara de classe médica para 21%, 22%. Agora, o problema é que, a partir daí, da classe média, a curva, a alíquota, começa a cair. E chega nessa casa de renda a 2,5% de alíquota média. O que nós propusemos – na minha opinião, uma equipe muito engenhosa. ‘Vamos pedir para esse cara, que está pagando 2,5% de alíquota e que ganha mais de R$ 1 milhão por ano, completar 10%. Se ele paga 5%, vai pagar mais 5%, se paga 2% vai pagar mais 8%, se paga 10% não vai pagar mais nada’. Só de completar os 10% dá para completar os R$ 30 bilhões necessários para isentar 10 milhões de brasileiros e reduzir o imposto de outros 5 milhões que ganham de R$ 5 mil a R$ 7 mil.
Posso te fazer uma provocação? A provocação é a seguinte: a gente está falando de uma turma que ganha muito dinheiro, de uma turma que detém boa parte da dívida pública brasileira, porque é a turma que consegue guardar dinheiro, que investe dinheiro, e a gente está falando que essa turma paga 2,5% de alíquota efetiva média. E a gente está falando que o trabalhador da classe média brasileira que passa o maior perrengue, que acorda de manhã, que não consegue juntar dinheiro etc., paga 20%, 21%, 22%. Por que a gente diz que está fazendo justiça botando o cara para pagar 10%. Por que não coloca esse cara para pagar 22%, 27%? Por que a gente luta pelos 10%? É por isso que às vezes fico meio indignado porque esse cara ainda vai reclamar e ele está pagando menos que o trabalhador. Se é para ser ‘justiça’, esse cara tinha que pagar a mesma coisa que um professor.
Você tem toda a razão. Aí entra o seguinte raciocínio: primeiro, também acho pouco a alíquota de 10%. Ponto. Estamos de acordo. Eu tenho que sopesar a correlação de forças que tenho no Congresso para aprovar, porque eu posso mandar 30% para lá, mas e aí? Vai aprovar ou vai ficar na gaveta de alguém? Então, o Brasil precisa dar os passos necessários para ir buscando. Nós estamos abrindo uma nova avenida, uma nova seara de trabalho que nunca foi aberta nem pelos nossos governos.
Eduardo, o que deveria nos chocar também é o seguinte: nós estamos no quinto governo do PT, nós podíamos ter feito isso no primeiro. Estou botando um dedo em um vespeiro que meus antecessores de direita e de esquerda não botaram a mão nesse troço. Então, primeiro dizer isso: concordo, mas nós temos que ir mudando a mentalidade da elite brasileira, temos que mostrar para eles que o Brasil é viável como nação. Isso aqui não é um território extrativista, que o cara tira tudo, leva para fora, manda a família, leva o patrimônio e vai embora.
Isso aqui é uma nação viável – eles precisam entender isso. Então tem uma questão pedagógica em relação à elite brasileira, que é mudar a mentalidade da elite – deixar de ser extrativista e ser produtivista, o que inclui o povo, porque se o povo não tiver renda, não tem consumo, não tem desenvolvimento, não tem nada. Tem que educar, tem que abrir a universidade. Eu, quando fui ministro da Educação, eu bati nessa coisa: pobre tem que estar na universidade pública.
Só tinha gente de classe média e classe alta na universidade pública quando eu fui estudante. Hoje não, hoje você tem uma diversidade na universidade pública. Nós fizemos distribuição de renda dando vaga para quem é de escola pública, e aumentamos muito as vagas – as universidades viveram uma expansão inacreditável durante os governos Lula. Segundo, tinha uma questão que era o seguinte: eles queriam deduzir o imposto de pessoa jurídica, porque diziam: ‘eu já pago 34% na minha empresa’…
E a gente sabe que não paga, tem juros sobre capital próprio, a gente sabe que tem um monte de manobra fiscal, provisão, um monte de coisas, né?
É isso. O projeto do Guedes [Paulo Guedes, ministro da Economia do governo Bolsonaro] era assim: vou cobrar 15%, mas reduzia os 15% da pessoa jurídica. Então ficava elas por elas, por isso eles não conseguiam espaço fiscal para isentar pessoas que ganhavam até R$ 5 mil. Eu falei: não, a pessoa jurídica vai ficar pagando o que ela está pagando. Mas como ela não paga… eu falei, vou cobrar 10%, mas não vou mexer com pessoa jurídica. Agora, se você pagar os 34%, você pode continuar isento nos dividendos. Mas quem paga 34%? É tanto planejamento tributário, que quando você vai ver ali, no frigir dos ovos…
A alíquota efetiva média paga pelos bancos é de 14%.
FH – É isso. Então, o que nós fizemos? Nós introduzimos uma maneira de ver o problema diferenciada. Tanto é que, quando os lobbies foram dentro do Congresso dizendo: ‘mas eu já pago 34%, você tem que reduzir 10% da minha conta’, os deputados falaram: ‘Não, mas se você paga 34% você vai continuar isento’. E aí a máscara caiu.
Vamos supor que você tenha maioria no Congresso – o Congresso é nosso. Qual seria… por que é importante para as pessoas conhecerem o que está por trás do Haddad. Porque às vezes as pessoas pensam o seguinte: ‘o Haddad está querendo fazer os 10% porque ele não quer mexer com Faria Lima etc.’. Se você tivesse maioria, qual seria a reforma tributária dos seus sonhos?
Vou responder em duas frases: Qual foi o ministro da Fazenda que mexeu nos vespeiros que estou mexendo? Me diga, eu sou amigo de alguns. Quem mexeu com fundo offshore? Quem mexeu com fundo fechado? Quem mexeu com voto de qualidade no Carf? Quem mexeu com botar na internet todas as isenções fiscais empresa por empresa? Quem fez isso? Não estou querendo me colocar acima e abaixo de ninguém, estou querendo dizer o seguinte: quando a pessoa vai lá me criticar nas redes sociais, falar que sou neoliberal, comunista… presta atenção no que estou fazendo, e compara diante da correlação de forças que a gente tem.
Por isso que eu falo: a sua pergunta é boa por que fala quem é o Fernando Haddad e o sonho que ele tem. O Fernando Haddad é aquele que está buscando justiça social como há muito tempo não se faz no Brasil. Você pode dizer é insuficiente, você tem sido fraco, pode fazer o que quiser, mas não coloque em dúvida os meus propósitos. Eu tenho formação e eu tenho lado, e o meu lado é buscar justiça social. Agora, se fosse fácil, já teriam feito. O que eu fiz? Aprovei a maior reforma tributária do país sobre o consumo, que é o IVA (Imposto sobre Valor Agregado], vai beneficiar as pessoas da cesta básica, as pessoas que trabalham, e estou fazendo agora a da renda.
Estou fazendo as duas maiores reformas tributárias em regime democrático. Se nós tivéssemos a força que a direita hoje tem, ou seja, 300 votos – nós não temos, temos 100. Qual seria a reforma tributária mais correta? Nós avançarmos mais no imposto de renda para reduzir o imposto sobre consumo. A alíquota do IVA poderia cair mais se nós formos futuramente na direção apontada por essa reforma, se nós prosperarmos nesse caminho, nós vamos ter um imposto sobre consumo menor.
Então, se eu pudesse fazer uma reforma ideal, eu digo, essa está no caminho da ideal. Ela é boa, mas tem uma ótima. Ou ela é regular e tem uma boa – como você quiser. Tem uma melhor que essa para fazer? Tranquilo – sou o primeiro signatário. O caminho é esse. Qual é? Os impostos sobre renda no Brasil são baixos na comparação internacional e os impostos sobre consumo são altos na comparação internacional.
Na questão de imposto sobre patrimônio, tem alguns aqui no Brasil que são similares a países desse tamanho, como IPTU etc., mas tem uns que são muito mais baixos. O ITR (Imposto Territorial Rural) sempre me deixou revoltado! Todos os latifúndios e grandes fazendas do Brasil pagam por ano R$ 2 bilhões, que é nada. E estamos falando de fazendas que tem o benefício de, ao exportar, não ter o imposto por causa da Lei Kandir, e estamos falando de pessoas que pegam esse dinheiro que fica rendendo ali nos juros do Brasil, e cada vez desempregando mais com a mecanização. Tudo bem, essas pessoas aparecem no PIB, o Brasil está crescendo, mas na vida das pessoas é importante a gente ver o efeito. Não seria o caso de essas pessoas pagarem uma parcela justa de ITR pela parcela da terra que eles usam?
FH – O imposto sobre patrimônio tem duas naturezas: uma pela propriedade. Uma das coisas que indignava muito as pessoas é que um carrinho, por mais barato que fosse pagava lá 4% de IPVA (IMposto sobre Propriedade de Veículos Automotores) e um jatinho, um iate, zero. Nós colocamos na Constituição a permissão para que os governadores possam criar um IPVA de aeronaves e embarcações. Eu não sei como os governadores vão se portar diante disso. Tem que ter um cuidado para calibrar para que também não tenha um problema de fuga – o cara registrar aeronave em outro país. Nós abrimos uma chance de começar a pensar nisso. A outra coisa é o imposto sobre propriedade, do imóvel primeiro. Você tem IPTU e ITR. A maioria das cidades brasileiras não cobra IPTU. Você pega uma cidade como São Paulo, porque teve governos progressistas – Erundina, a Marta [Suplicy] e eu -, você tem imposto progressivo. E mais! Além de imposto progressivo, quer dizer, uma mansão paga proporcionalmente mais…
O percentual do valor do imóvel sobe junto com o valor do imóvel.
Junto com o valor do imóvel. O Minha Casa, Minha Vida é isento – não paga IPTU. Mas uma mansão no Jardim Paulista paga uma alíquota alta. E tem outra coisa que nós fizemos aqui que os governos que me sucederam abandonaram, que era o IPTU progressivo no tempo, cuja alíquota podia chegar a 15%. Ou seja, tem um prédio abandonado, eu vou cobrando IPTU progressivo no tempo, à medida que o tempo passa a alíquota vai subindo, para o cara dar uma função social para aquilo. Poucas cidades fazem isso. Então, já existe legislação hoje no Brasil para cobrar IPVA de jatinho e embarcação; já existe legislação para IPTU progressivo; já existe legislação para IPTU progressivo no tempo, para cumprimento de função social da propriedade. Já tem, as pessoas não fazem. O prefeito às vezes fica cheio de dedos para tocar nesse assunto.
Às vezes o prefeito é o maior proprietário (risos).
Vamos por aí. Segundo lugar, o ITR foi em parte municipalizado, porque teve uma lei lá atrás, é como se o ITR fosse um IPTU do campo, mas sob jurisdição do prefeito. Está com problema isso. Estamos sentados com alguns prefeitos para rever essa legislação para o prefeito ter mais participação nisso em função do fato de que não se cobra essa propriedade rural no Brasil. Não estou falando do sítio…
Deixa eu dar um exemplo para as pessoas se você me permite. Eu tenho um sítio aqui perto de São Paulo, que fica a 15 minutos do centro de uma cidade do interior de São Paulo. Eu tenho ali 120 mil metros quadrados. Por ano, eu pago R$ 250 de imposto.
Não é nada.
É zero. É óbvio que tem gente que vai dizer que não é competitivo… então, a gente encontra maneiras… ‘Ah, em cima do imposto que ele paga no lucro do negócio você abate’. Alguma criatividade para não atrapalhar a competitividade. Agora, o que não pode, na minha opinião, é os grandes donos desse patrimônio, o maior patrimônio nacional, que é a terra que a gente tem, poderem viver sem pagar imposto.
A quarta colocação que eu faria concordando com você é o imposto de transmissão, que é sobre herança, que aí também no Brasil é uma coisa na comparação internacional muito baixa. Não é um imposto federal como você sabe, é um imposto estadual. A resolução do Senado permite a cobrança até 8%, e poucos estados atingiram esse percentual.
A discussão é trazer para meio por cento. Aqui em São Paulo, os governos de direita sempre tentaram trazer esse negócio para ali perto de zero.
Prefeitos e governadores têm muita dificuldade de lidar com impostos sobre propriedade porque é uma pauta que não querem enfrentar, você vai mexer com gente poderosa, e você prefere bater na porta da União e pedir dinheiro para a União, prefere aumentar o FPM [Fundo de Participação dos Municípios] e o FPA [Frente Parlamentar Agropecuária]. A viúva lá, que é o Executivo federal, é sempre lembrada quando falta dinheiro. Então todo mundo bate na porta da viúva quando falta dinheiro – essa que é a verdade. O Executivo federal foi depenado nos últimos 10 anos. Depenado! Por isso que a gente está numa situação fiscal que ainda inspira cuidados. Uma parte foi para emenda, uma parte foi para governador, uma parte foi para prefeito…
Não sobrou nada – é isso aí. Agora pegando o campo ainda e indo para outro assunto. Você falou da questão do voto de qualidade do Carf [Conselho de Administração de Recursos Fiscais], e eu acho que pouquíssima gente fala sobre isso, e isso é uma grande conquista, e essa tenho que creditar a você e sua equipe. Para as pessoas que não entendem, né?, quando você tem grandes discussões sobre valores a pagar de impostos e obrigações que as empresas têm com o Estado, isso é levado para uma votação, e nessa votação a Receita [Federal] vota e os representantes das empresas votam.
E antigamente a votação de desempate estava com as empresas, o que é uma maluquice, né? E o que vocês conseguiram fazer é que esse voto de desempate viesse para a Receita. Mas aí eu queria aproveitar esse assunto para falar o seguinte: a gente estava falando de campo. Você tem R$ 200 bilhões de dívida dos grandes latifundiários no Brasil não paga. Você tem no Brasil um número gigante, milhões – eu sabia o número, mas não lembro de cabeça -, mas milhões de hectares em que o valor da dívida é maior que o valor da terra dessas pessoas, e o total da dívida ativa brasileira não sei se é em torno de R$ 1 trilhão…
A dívida ativa? R$ 5 trilhões.
R$ 5 trilhões – empresas, fazendas etc. A pergunta é: o que a gente vai fazer para esse cara do campo que, por exemplo, não paga o ITR… ou seja, para ele pagar a dívida dele, das empresas que recebem os subsídios, pagarem a dívida. Os caras ganham dos dois lados: ganham subsídio e não pagam a dívida. Aí é mole ficar rico, né?
Mole. Bom, vamos primeiro falar do Carf um pouquinho. O Carf era um órgão administrativo das receitas: estadual, federal, municipal. Eles criaram um Carf paritário, coisa que já é única no mundo. Não existe nenhum Carf que é paritário no mundo. Mas o Brasil foi além de criar um Carf paritário: ele deu empate para o contribuinte, sendo paritário. Imagine um órgão que é paritário e o empate é [em favor] do contribuinte.
Sem voto de qualidade, a OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] mandou uma carta para o Brasil dizendo: ‘oh, isso aqui fere a concorrência, porque o mau contribuinte vai levar a melhor’. Óbvio! Se você está estimulando o não pagamento do tributo, aquele que paga tributo, você está fazendo uma concorrência às avessas – em vez do mais competitivo, do mais produtivo, o mais inovador, você está favorecendo o mais malandro.
É uma loucura o sistema tributário brasileiro! Para você ter uma ideia, chegou a média do processo administrativo antes da Justiça, do processo administrativo da Fazenda, inclusive por conta do fim do voto de qualidade, chegou a oito anos. Oito anos! E ele chegava a 18 anos quando você contava a esfera judicial. Dezoito anos para chegar ao fim do processo. É ultravantajoso dever para a Receita. Você vai pagar a Selic [taxa básica de juros] – o crédito mais barato que tem no Brasil é a Selic.
O cara está aplicado sem pagar imposto, a Selic com risco federal. Não tem como ficar melhor que isso.
Não tem como ficar melhor. Então nós criamos uma máquina de inadimplência. O voto de qualidade, voltando, nós já caímos para 5,7 anos. Ainda é muito, deveria durar menos de um ano o processo administrativo. Mas eram oito. Eduardo, nós estamos fazendo um trabalho de ‘republicanização’ da Receita Federal porque ela foi privatizada no governo Bolsonaro, e isso foi uma armação que ninguém ainda fez direito uma reportagem sobre o que aconteceu, porque vai achar todas as digitais do que de fato aconteceu com o fim do voto de qualidade no Carf. Tinham interesses de grupos econômicos que tinham processos bilionários no Carf que não queriam ser julgados ou julgar pelo empate e sair fora. O que nós precisamos fazer agora, nós temos algumas leis no Congresso que acham que vão passar – do devedor contumaz, por exemplo. Estamos há oito anos esperando a votação do devedor contumaz, que é o famoso pilantra, que vai abrindo CNPJ atrás de CNPJ …
Para ficar devendo em contas diferentes – é isso.
Em contas diferentes e você não pega o cara nunca. Ele vai quebrando empresa e abrindo empresa, quebrando empresa e abrindo empresa, como no Brasil não tem crime tributário que dá cadeia, o cara faz isso e quando junta uma porção de dinheiro vai embora para o fora do Brasil.
As bets viraram uma epidemia muito trágica no Brasil. A gente tem quase 10 milhões de pessoas que têm sintomas de vícios no Brasil. A gente tem – para mim esse é o pior número – 60% das pessoas [que jogam] têm até 39 anos de idade. São pessoas mais jovens, um número grande de pessoas está adiando a sua formação. E a gente, depois de legalizar, regular a questão das bets, esse negócio continuou subindo em um ritmo absurdamente alto, e aí tem até uma questão importante, tem um estudo da Universidade da Califórnia de San Diego – que é onde eu estudei por acaso -, que eles ficaram analisando os EUA depois que legalizou [as apostas online]. E o ticket médio, o valor médio apostado por pessoa, cresceu quase 400%, porque é como se as pessoas tivessem uma chancela de que aquilo é uma coisa legal para fazer, no sentido jurídico e legal no sentido de que, poxa, vale fazer o negócio.
E aí a pergunta é: nós temos dois tipos de apostas no Brasil – as esportivas, que são em torno de 20%, essas online, que mais vemos; mas aquelas dos cassinos online são uma roubalheira total, que não sabemos nem como é o sistema que o cara fez. Então você fica perdendo na roleta e nunca vai ter como conferir, e isso é dinheiro que está saindo para outro país. Será que não valeria a pena proibir esses cassinos online que a gente não têm o menor controle e é só perder dinheiro; e as esportivas fazer uma super regulação como a gente faz com o cigarro?
Porque o que me incomoda quando a gente fala só vamos aumentar o imposto é, primeiro, a gente passar de alguma maneira ficar dependente das bets como as pessoas dizem que o futebol ficou dependente das bets. E segundo se, a gente for acabar R$ 12 bi, mas o povo pobre no ano passado perdeu R$ 30 bi, então é quase como se a gente tivesse fazendo uma arrecadação em cima do dinheiro do povo pobre, e esses caras conseguem comprar todo mundo – é propaganda em tudo que é lugar, é editorias, a pergunta é: como a gente vai conseguir combater isso, porque isso é um problema muito grande e até da nossa economia?
Eduardo, você tem toda a razão e em tudo o que você está falando. Tudo. Eu cheguei ao Ministério da Fazenda com uma epidemia posta. E pior que isso: os caras ficaram quatro anos sem regulamentar publicidade, ficaram quatro anos sem cobrar imposto de bets, foram mais de quatro anos e R$ 40 bilhões de subvenção que foi tudo para fora, comprar um cripto, comprar um dólar, fintech, mandaram tudo para fora. Esse dinheiro sumiu do Brasil e diante do caos que estava nós falamos, vamos colocar isso dentro de um sistema informatizado para eu saber o que está acontecendo. Eu não tinha nenhuma noção do que estava acontecendo. Hoje eu sei e é uma desgraça. O que está acontecendo é uma desgraça. O que nós vamos fazer agora? Passados os seis meses, que o Estado finalmente se apropriou das informações, nós vamos levar para a mesa do presidente os dados e tratar isso como um problema de saúde pública sério. Um problema sério! Então nós vamos ter que ver, primeiro, a publicidade disso. Você sabe que bebida e cigarro tem uma publicidade ultra-restritiva. Até outro dia não tinha – Fórmula 1… Acabou! Outra coisa, essa questão dos jogos de azar e da aposta esportiva, vamos diferenciar, não vamos diferenciar. Outra coisa, fintech que está servindo de veículo para bet ilegal…
E muitas vezes lavando dinheiro. Bet mais fintech igual a lavagem de dinheiro.
Exatamente. Nós já estamos informando o Banco Central das fintechs que estão servindo de veículo possivelmente para o crime organizado, ou para lavagem de dinheiro, ou para coisa pior. Então tem muitas coisas a serem vistas. Nós vamos incorporar a Polícia Federal nesse debate porque não é só atribuição do Ministério da Fazenda, tem crime por trás, e eu penso que agora nós temos um quadro para mostrar ao país, nós podemos estampar para o país, nós temos um problema, olha o tamanho do problema que foi criado, você sabe que foi criado no final do governo do Temer [Michel], passou quatro anos sem ninguém fazer absolutamente nada, ganhando dinheiro a rodo, e você tem razão em dizer que é o pessoal até 40 anos que mais joga, então nós vamos ter que enfrentar.
É aquela história, eu nunca te pedi nada, já te pedi alguma coisa até hoje?
Claro que não!
Então eu vou te pedir a primeira.
Pode pedir.
Cuida com carinho essa questão das bets, porque é uma coisa que realmente está machucando muito. As famílias estão sofrendo, coisas que eu vejo que são indizíveis, como diria o outro.
Olha, eu soube de casos escabrosos envolvendo bets, de conhecidos que chegaram a perder familiares em função de bets. Então é um drama real. Se você me perguntasse… Você me perguntou…
É, mundo ideal.
Mundo ideal, para mim isso aí…
Proibido.
É que tecnicamente é muito difícil você bloquear…
Não, mas dá, porque…
Se fosse aparecer um projeto na Câmara Federal, continua ou para, eu apertava o botão do para. Não tem arrecadação que justifique essa roubada que nós chegamos. É muito ruim o que está acontecendo.
